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  • Foto do escritorFilmes do Mato

Crítica: Degustação ousada - IMO

Crítica feita por Filippo Pitanga ao longa-metragem IMO (2018) da diretora Bruna Schelb Corrêa. Publicada em 24 de janeiro de 2018 durante a Mostra de Cinema de Tiradentes.



Quem diria…, virou o ano e fomos esbarrar com a ‘sequência’ de “Mãe! 2” de Darren Aronofsky, versão brasileira, logo na  21° Mostra de Cinema de Tiradentes, com o filme “Imo” de Bruna Schelb Corrêa, 2° longa-metragem inédito competindo na Mostra Aurora. Com todas as controvérsias e deliciosos dilemas ambíguos junto…


Para muita gente, “Mãe!” foi o melhor filme do ano passado. Para a outra metade, “Mãe!” foi o pior filme do ano. Por mim, coloco-me mais para o primeiro time do que para o segundo; ainda que, transferindo a metáfora para o filme brasileiro “Imo” de Bruna Schelb, aqui em questão, a plateia de Tiradentes tenha sentido dificuldade de imersão, talvez por ser uma obra extremamente intimista para ser absorvida no meio de um Festival. Eis que as inúmeras controvérsias de “Mãe!”, tanto pela representação feminina e conflitos de gênero, quanto pela revisão bíblica, retornam em “Imo”. Ambos filmes tangenciam uma dicotomia cruel com que a humanidade deu ao masculino arquétipos potestativos de “Deus” e ao feminino arquétipos resilientes de “Mãe Natureza”, mostrando que a subjetividade masculina sempre teve uma vantagem na história, objetificando a mulher. O diretor de “Mãe!”, Darren Aronofsky, era um homem, branco, cis, hétero etc. Ou seja, a ‘crítica’ que ele fez adveio de um lugar privilegiado, e ao criar uma história de agressão à mulher para criticar o sistema, ele acaba talvez reproduzindo e replicando essa injustiça para chocar pelo espelhamento do absurdo. O oposto de “Imo”.


Agora temos um trabalho de experimentação visual e estética 100% brasileiro e mineiro, com representatividade de gênero com uma diretora mulher guiando esta crítica. E retorna a analogia bíblica. Já começando a revisão histórica pelo título: “Imo” possui vários significados. ‘Imo’ em inglês quer dizer ‘in my opinion’, ou seja, ‘pelo meu ponto de vista’. Em português ‘imo’ pode dizer ‘íntimo’, pessoal, ou mesmo o sufixo de palavras, usado para intensificar seu significado: ‘sereníssimo’, ‘dificílimo’ etc. Isso quer dizer que este será um ponto de vista pessoal na revisão histórica que se fará. E, levando em consideração que a diretora pretende fazer uma revisão bíblica pelo ponto de vista das mulheres, é inequívoco e indispensável mergulharmos na questão de gênero sob a ótica da primeira pessoa, abrindo nosso sensorial para sermos atravessados pelo olhar feminino e feminista. Inclusive ante a possibilidade de ir onde “Mãe!” não foi: inverter os papéis e fazer uma santa ceia com um Cristo mulher, compartilhando seu corpo e sangue e multiplicando a comida.


São três episódios, praticamente sem falas, todos calcados na performance e nas artes plásticas, com alegorias e metáforas mis. E, como todo filme episódico, os próprios capítulos acabam sendo postos em comparação por sua própria Tabula de referência interna, e precisam ser vistos através do maior ou menor grau de êxito em criar uma ambientação e sintonia que os unifique.


Como episódios, para não abordar particularidades demais de modo a evitar estragar surpresas, vale dizer que o primeiro faz uma analogia bastante aberta com Adão e Eva; o 2° uma metáfora com todas as mulheres que a Bíblia já vitimizou, como a esposa de Ló que é transformada em estátua de sal por olhar para trás por curiosidade quando as cidades de Sodoma e Gomorra estão sendo destruídas por Deus; E, por fim, o último segmento seria a Santa Ceia, e a versão de Cristo sendo sacrificada se torna uma mulher…


O problema de não poder estragar nenhuma surpresa com spoilers é perder a chance de interpretar cada nuance e minúcia metafórica do filme. Mas tentando apenas abordar superficialmente, até para aproveitar a potência imagética e interpretativa, o primeiro capítulo é um primor inigualável. Por si só, já seria um dos melhores filmes da Mostra. São tantos detalhes que hipnotizam da direção de arte e iluminação aos enquadramentos pictóricos, tudo meio kitsch e meio retrô ao mesmo tempo. Seja a presença magnética da atriz trans, seja pelos truques abstratos em cena, como os múltiplos braços que a atriz adquire como se fosse uma Deusa Shiva.


E nota-se a questão de gênero retornando que, por ser uma artista trans, que contém em si uma história de ambos os gêneros no corpo, e ao mesmo tempo se tendo maioria de braços femininos em cena e apenas um masculino que será o ponto de tensão, a dicotomia homem/mulher contém um amálgama à la Adão e Eva numa só pessoa, num equilíbrio entre os sexos, mas pendendo para o feminino/feminismo como reestruturador social. Fato confirmado pela maçã que surgirá um pouco depois, o símbolo do pecado original. O som fora de quadro é crucial para criar uma atmosfera de tensão constante e cortante, tão inebriante quanto uma trilha sonora diegética. Incômodo este que faz um exercício inusitado de estimulação e repulsão do espectador, até que se torne tão natural que seja absorvido como normal, e até imprescindível. São inúmeras chamadas de telefone não atendidas, batidas na porta e muitos outros barulhos e sons, como um acúmulo de todas as exigências sociais à mulher múltipla. Ela precisa atender, anotar, traduzir o que está sendo dito por uma voz indecifrável, porém certamente masculina. Este como todos os contos acaba de forma violenta, como se reocupasse o imaginário bíblico e recuperasse à força a relevância da mulher que foi invisibilizada por tanto tempo.


O segundo episódio, apesar de igualmente belo e fotografado de forma criativa como se tivesse sido pensado quadro a quadro, em seu próprio ritmo reflexivo para aprofundar os significados e significantes da imagem, perde um pouco o êxito equilibrado do anterior. Por exemplo, utiliza-se um pouco menos do excelente recurso musicado dos ruídos ritmados, dos incômodos sequenciados, apesar de estarem lá de forma mais sutil. Concentra-se um pouco mais explicitamente no que é visto e sentido através das percepções mais palpáveis através dos sentidos imediatos. Também é o que recai um pouco mais facilmente num tensionamento romântico literal entre os gêneros, tentando subverter as expectativas do casal, da curiosidade da mulher em geral castigada por se individualizar e ter seu próprio olhar, que aqui vai ser recuperado através da violência, mesmo que autoinfligida.


Por fim, o último episódio recupera o potencial do início, com uma revisão radical de uma Maria Madalena em pé de igualdade com Cristo, voltando a usar o som de forma inspirada para dar mais simbologias que qualquer palavra, e tanto a dar quanto tirar vida, numa sororidade construída. E é muito bem-vinda uma metáfora com mesa de jantar tão belamente referenciada ao filme “At Land” de Maya Deren.

Um filme ousado e não facilmente digerível por intenção consciente, mas de satisfação radicalmente saborosa e reivindicatória às mulheres.


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